Publicado em: 08/04/2020 às 00:00hs
Decorre do desejo humano de criá-la para a realização de atividades lícitas que em cooperação serão mais efetivamente alcançadas. Submete-se aos princípios gerais da atividade econômica, previstos no artigo 170 da Constituição Federal e deve se fundar na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
De natureza constitutiva, nosso Código Civil de 2002 adotou a teoria da realidade técnica, isto é, as pessoas jurídicas de direito privado adquirem personalidade própria a partir de seu registro, prevista no artigo 45:
Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. (...)
O registro, conforme legislação vigente deverá ser efetuado na Junta Comercial do respectivo Estado para as microempresas ou sociedades empresariais, e no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas para as fundações, associações ou sociedades simples. Porém, há casos que requerem registros específicos como, por exemplo, as sociedades de advogados, que dependem do registro na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), os partidos políticos, que necessitam do registro no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
As atividades realizadas pelos sócios antes do registro societário, expondo uma sociedade de fato, ou irregular, vinculam-nos de modo pessoal e ilimitado no que se refere às obrigações.
Código Civil Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.
Os sócios, nessas condições, assumem obrigação para com terceiros de um modo que deverá honrá-lo mesmo que para isso sejam obrigados a buscar todos os seus bens particulares. Nessa situação, primeiramente esgotam-se os bens da sociedade e em seguida os dos sócios até o limite da satisfação da obrigação. É o que se chama de benefício de ordem.
Código Civil Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.
Exceção à regra vem prevista no artigo 990 CC, acima transcrito, quando exclui do benefício de ordem o sócio que perante terceiro assumiu o compromisso em nome da sociedade.
Será de três anos o prazo decadencial para se anular a constituição da pessoa jurídica, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.
Uma vez registrada e, portanto, dotada de personalidade própria, seu patrimônio será distinto do de seus instituidores e sua administração deverá seguir estritamente a sua função social, isto é, todas as atividades deverão se restringir à finalidade para a qual a pessoa jurídica se constituiu sob pena de incorrer em ilegalidades e as responsabilidades decorrentes atingirem os sócios que a elas deram causa. É importante mencionar que os efeitos decorrentes do registro da sociedade não retroagem para atingir os atos realizados anteriormente.
Preconiza o Código Civil em seu artigo 49-A:
Art 49-A - A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
A pessoa jurídica possui autonomia patrimonial e seus atos e negócios não se confundem com os dos sócios. Desde que as atividades da pessoa jurídica sejam realizadas com a observância dos ditames legais e de seu ato constitutivo e dos legítimos representantes a ela caberá honrar seus compromissos e responder por eles até o limite de seu patrimônio no caso de danos a terceiros. Em outras palavras, os sócios nestas condições, não responderão com seu patrimônio particular.
Vale lembrar que a legislação atual permite sociedades individuais, tanto empresárias como as simples que se constituem de apenas um sócio. É uma inovação pois até então uma sociedade se formava pela “necessidade ou conveniência de os indivíduos unirem esforços e utilizarem recursos coletivos para a realização de objetivos comuns, que transcendem as possibilidades individuais” . Enquadra-se como sociedade simples o advogado que constitui uma pessoa jurídica em que há apenas um sócio ou no caso de sociedade empresária a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI).
Exemplificando uma situação cotidiana: um veículo estacionado em local regulamentado na rua tem sua lateral atingida pelo caminhão de uma transportadora que ao manobrar, atingiu o veículo. Tomadas todas as providências cabíveis, a transportadora será responsável pelo ressarcimento dos danos causados ao terceiro, no caso o dono do veículo. A responsabilidade pelo ressarcimento ao terceiro recairá sobre o patrimônio da pessoa jurídica uma vez que não houve na atividade realizada um desvio da função social, apenas um acidente de trânsito.
Nosso Código Civil adota o regime da responsabilidade subjetiva. É preciso demonstrar o nexo causal entre a conduta do agente e o dano causado e também a culpa.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
O mesmo não se pode dizer das relações de consumo e dos delitos ambientais em que o legislador atribuiu responsabilidade objetiva ao agente causador do dano. Para o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), o consumidor é considerado a parte hipossuficiente da relação jurídica e caberá ao fornecedor o ônus da prova de que não há nexo entre o dano causado a terceiros e sua conduta.
Nos delitos ambientais previsto na Lei 9.605/98 cumulado com o teor da Lei 6.938/81, ocorre a mesma inversão. Independentemente de culpa, aquele que impactar o meio ambiente (seja pessoa jurídica de direito privado ou publico), independentemente de culpa (seja poluidor direito ou indireto) será obrigado a reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados pela atividade impactante.
A autonomia patrimonial conferida pela Lei às pessoas jurídicas tem como objetivo gerar riqueza para a sociedade, através de geração de empregos, investimentos, e proporcionar maior qualidade de vida para as pessoas.
Entretanto, existem algumas situações em que os sócios atuam de tal forma que extrapolam os limites previstos na pessoa jurídica e cometem abusos, fraudes, desvio de finalidade, causando prejuízos a terceiros. Aproveitam-se da independência patrimonial para fazer o mau uso da pessoa jurídica em prejuízo de terceiros de boa-fé.
Nesses casos, identificado o ilícito, é permitido desconsiderar (disregard em inglês) a pessoa jurídica e alcançar os bens dos sócios tanto quanto necessário a satisfazer os prejuízos causados ao terceiro prejudicado.
O Prof. Carlos Roberto Gonçalves, citando Fábio Ulhoa Coelho, escreve que o juiz pode:
“deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade.“
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor, em 1990, o Código Civil, em 2002, a Lei de Crimes Ambientais em 1998, adotaram a desconsideração da personalidade jurídica, como se pode depreender dos artigos a seguir:
Art.28 CDC: O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Art. 50 CC: Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. (redação anterior à Lei 13874/2019)
Art. 4º Lei 9.605/98: Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
É preciso deixar claro que a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser decretada em qualquer situação. Cabe ao credor apresentar provas convincentes de que houve abuso, fraude, etc.
Nas palavras dos doutos Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
“O afastamento do manto protetivo da personalidade jurídica deve ser temporário e tópico, perdurando, apenas no caso concreto, até que os credores se satisfaçam no patrimônio pessoal dos sócios infratores, verdadeiros responsáveis pelos ilícitos praticados. Ressarcidos os prejuízos, sem prejuízo de simultânea responsabilização administrativa e criminal dos envolvidos, a empresa, por força do próprio princípio da continuidade, poderá, desde que apresente condições jurídicas e estruturais, voltar a funcionar” .
“Por isso, vale registrar que, tecnicamente, pelo fato de a desconsideração ser uma sanção que se aplica a um comportamento abusivo, ela é decretada, e não declarada, como muitas vezes se utiliza a expressão” .
O Prof. Carlos Roberto Gonçalves também faz uma distinção importante entre Despersonalização e Desconsideração:
“A primeira acarreta a dissolução da pessoa jurídica ou a cassação da autorização para seu funcionamento” .
E, citando as palavras do Prof. Fábio Konder Comparato, na Desconsideração: “subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes, mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão só para o caso concreto” .
Existe a possibilidade de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Nestes casos o credor requer a busca dos bens no patrimônio da pessoa jurídica pois o sócio, a fim de se esquivar da obrigação, transfere para a empresa seus bens particulares. A previsão legal está contida no §2ª do artigo 133 do Código de Processo Civil.
A Lei de Liberdade Econômica nº 13.874, de 20/09/2019 trouxe uma modificação à redação do artigo 50 do Código Civil e acrescentou que a desconsideração atingirá os sócios que de forma direta ou indireta forem beneficiados pelas condutas irregulares:
Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (grifo nosso)
O texto da Lei vem ao encontro das palavras do Prof. Pablo Stolze que em 2017, escreveu:
“Correto estaria o legislador, em nosso sentir, se exigisse, para a desconsideração, que fossem indicados, em requerimento específico, o agente causador do dano e o ato abusivo que praticou.” .
A nova redação dada ao texto parece restringir o cabimento de tal medida pois estabelece que somente os bens particulares de administradores e sócios beneficiados direta ou indiretamente serão alcançados pelos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica. O artigo ainda recebeu cinco parágrafos os quais definem desvio de finalidade, confusão patrimonial e dá outras orientações:
§1º - Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§2º - Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§3º - O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§4º - A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§5º - Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Esta responsabilidade se extingue em dois anos para o sócio que se desvincula da sociedade. O Código Civil, em seu artigo 1032, estabelece:
A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação.
Para elucidar melhor a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, seguem 04 julgados recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O primeiro, refere-se ao Agravo de Instrumento nº 2237657-94.2019.8.26.0000.
A ação de execução de título extrajudicial teve a decisão de primeiro grau em que reconhece a existência de grupo econômico e inclui empresas no polo passivo da execução, porém sem instaurar o incidente de desconsideração da pessoa jurídica, previsto no art. 133 e seguintes do CPC. Em sede de recurso a sentença foi anulada para que haja a instauração do incidente e sejam respeitados o devido processo legal e o contraditório.
O segundo julgado, referente Agravo de Instrumento n° 2107858-95.2019.8.26.0000, trata da desconsideração inversa da personalidade jurídica, para buscar na empresa o ressarcimento ao credor por dívida dos sócios que se utilizaram da pessoa jurídica para esconder patrimônio. A confusão patrimonial se caracterizou pois apesar de os sócios se declararem pobres, ostentam um estilo de vida incompatível com o declarado. A decisão de primeiro grau que negava a desconsideração foi reformada pelo tribunal.
O terceiro julgado, Agravo de Instrumento nº 2259175-43.2019.8.26.0000, teve decisão de primeiro grau que autorizou a desconsideração da personalidade jurídica para buscar nos bens do sócio o ressarcimento à empresa credora. Em sede de recurso, a sentença se manteve e o embasamento já contou com a nova redação do artigo 50 do Código Civil dada pela Lei 13.874/19.
Por fim, o último julgado, referente ao Agravo de Instrumento nº 2186635-02.2016.8.26.0000, diz respeito à negativa de desconsideração da personalidade jurídica, por não estarem presentes os requisitos do artigo 50 do Código Civil. A decisão de primeiro grau manteve-se no Tribunal.
Os julgados acima merecem leitura integral pois demonstram na prática a interpretação dos tribunais e esclarecem ao leitor em que situações reais se caracterizam os desvios de conduta, a confusão patrimonial.
Luiz Carlos Aceti Junior - Advogado. Pós-graduado em Direito de Empresas. Especializado em Direito Ambiental, Direito Empresarial Ambiental, Direito Agrário Ambiental, Direito Ambiental do Trabalho, Direito Minerário, Direito Sanitário, Direito de Energia, Direito em Defesa Agropecuária, e respectivas áreas afinsDireito Empresarial Ambiental, Direito Agrário Ambiental, e Direito Administrativo. Mestrado em Direito Internacional com ênfase em direito ambiental e direitos humanos. Professor de pós-graduação em direito e legislação ambiental de várias instituições de ensino. Palestrante. Parecerista. Consultor de empresas na área jurídico ambiental. Escritor de livros e artigos jurídicos em direito empresarial e direito ambiental. Consultor de portal www.mercadoambiental.com.br . Diretor da Aceti Advocacia www.aceti.com.br
Maria Flavia Curtolo Reis - Advogada. Pós-graduada em Direito de Empresas. Especializada em Direito Empresarial Ambiental, Direito Contratual e Obrigações Financeiras. Integrante da Aceti Advocacia www.aceti.com.br
Fonte: Aceti Advocacia
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