Publicado em: 10/02/2010 às 15:02hs
Reserva legal é a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural – excetuada a de preservação permanente –, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas. O conceito normativo de reserva legal é dado pelo art. 1º, § 2º, inciso III, do Código Florestal - Lei Federal n.º 4.771, de 15/09/1965 (com a redação da Medida Provisória n.º 2.166-67, de 24/08/2001).
A área de reserva legal tem que existir em toda e qualquer propriedade rural brasileira. Isso significa que parte do imóvel deve conter uma reserva florestal, que varia dependendo da região geográfica em que está localizada: compreende 80% do imóvel no caso da Amazônia Legal, 35% no cerrado e 20% nas demais regiões do País.
A localização da reserva dentro da propriedade deve ser aprovada pelo órgão ambiental estadual competente, ou mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal, ou outra instituição devidamente habilitada.
Não se trata, a reserva florestal, de servidão – em que o proprietário tem de suportar um ônus –, mas de uma obrigação decorrente de lei que objetiva a preservação do meio ambiente, não sendo as florestas e demais formas de vegetação bens de uso comum, mas bens de interesse comum a todos, conforme redação do art. 1º, do Código Florestal[1]. Não há que se falar, também, que reserva legal importa em ato de desapossamento administrativo ou desapropriação indireta apta a gerar qualquer direito indenizatório.
O conceito de reserva legal evoluiu com a legislação, e o que antes significava conservação de parte das matas que se supunham existentes passou a significar, também, dever pró-ativo de criar tal reserva onde não exista.
A evolução do conceito pode ser vista no posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, hoje, defende ser dever dos proprietários de imóveis rurais, mesmo em áreas onde não houver floresta ou vegetação nativa, adotar as providências necessárias à restauração ou à recuperação da vegetação, bem como proceder à averbação da reserva legal à margem da matrícula do imóvel.[2]
O primitivo Código Florestal (Decreto Federal n.° 23.793/34) dispunha em seu art. 23 que “nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente...” sob pena de cometer infração penal; embora sem usar o termo, a vedação do desmate de 25% da vegetação existente equivalia à reserva legal instituída pela legislação posterior e constituía, dada a vedação da derrubada, uma área de preservação permanente.
A reserva legal foi instituída no art. 16 do Código Florestal (Lei n.° 4.771/65) que, ao permitir a exploração das florestas de domínio privado, determinou que se respeitasse o limite de 20% da área de cada imóvel com cobertura arbórea; mas, segundo se depreendia de sua redação, deixou uma lacuna ao determinar a preservação de 20% das matas, sem exigir a recomposição das matas já derrubadas.
A obrigação de recompor a cobertura adveio com a Lei Federal n.° 7.803, de 18/07/1989 que, ao acrescentar o § 2° ao art. 16 do Código Florestal, desvinculou a reserva legal da preexistência de matas ao estabelecê-la em no mínimo 20% “de cada propriedade” e ao determinar sua averbação no Cartório Imobiliário. A disposição criou condições para a recomposição florestal ao nela vedar o corte raso (que implica a não exploração e a recomposição da vegetação).
A Lei Federal n.° 8.171, de 17/01/1991, que dispôs sobre a política agrícola, previu em seu art. 99 a necessidade de recomposição da reserva florestal legal, mediante o plantio, em cada ano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementá-la.
Dizia-se, antigamente, que a Lei n.° 7.803/89 dependia de regulamentação, tendo em vista que o seu art. 2° previa prazo para o Poder Executivo regulamentar a norma. Mas essa questão encontra-se superada pela jurisprudência, que defende que o § 2º, do art. 16, do Código Florestal (introduzido pela Lei de 1989) contém regra autoaplicável.[3]
O art. 16, § 2º, do Código Florestal (inserido pela Lei n.º 7.803/89) não dependia de regulamentação, ainda mais considerando o disposto no art. 99 da Lei n.° 8.171/91 (norma cogente de ordem pública, com aplicação imediata) e na Medida Provisória n.° 2.166-67/01 (última norma a modificar o Código Florestal), segundo a qual, “nos imóveis rurais em que a área de floresta nativa, natural, primitiva ou regenerada ou outra forma de vegetação nativa for menor que a mínima legal, a recomposição dessa reserva deverá ser feita mediante o plantio de pelo menos um décimo do necessário a cada três anos” (art. 44 e seguintes do Código Florestal, com a redação da aludida MP). Anotamos que a MP n.° 2.166-67/2001 está em vigor por força da Emenda Constitucional n.° 32, de 11/09/2001 (art. 2°).[4]
A obrigação de recomposição da cobertura vegetal decorre, ainda, do dever genérico de reparar o dano ambiental, independentemente da existência de culpa, (art. 225, § 3° da Constituição Federal e art. 14, § 1°, da Lei Federal n.° 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente).
A jurisprudência do STJ já consagrou a responsabilidade do atual proprietário, ainda que não tenha sido ele o responsável pelos desmatamentos anteriores. Aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito. A obrigação de regeneração é automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental; essa obrigação tem natureza propter rem e corresponde à responsabilidade objetiva e à função social da propriedade.[5]
A reserva legal – como limitação administrativa à propriedade – decorre de lei, vale dizer, o proprietário ou possuidor é obrigado a instituir, demarcar e reservar 20%, 35% ou 80% de sua propriedade para tal fim. Portanto, diz-se que a reserva legal preexiste a qualquer providência registrária de averbação; esta pode ser considerada ato secundário. O objetivo é perpetuar a localização da área protegida dentro da propriedade, que não poderá sofrer alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento da gleba. A finalidade primordial, portanto, é dar publicidade e obrigar o proprietário a manter, recompor ou restaurar a reserva.[6]
A averbação da reserva legal à margem da inscrição da matrícula do imóvel foi determinada no § 2°, do art. 16, do Código Florestal, através da Lei n.° 7.803/89. A determinação foi mantida nas alterações posteriores do referido dispositivo legal, cuja redação atual é aquela dada pela aludida MP n.º 2.166-67/2001 (§ 8°[7], do art. 16).
Houve entendimento de que a averbação somente era obrigatória nos casos em que houvesse exploração ou supressão de florestas nativas. No entanto, esse entendimento está superado.[8] “O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito que a Constituição assegura a todos (art. 225, CF), tendo em consideração as gerações presentes e futuras. Desobrigar os proprietários rurais da averbação da reserva florestal prevista no art. 16 do Código Florestal é o mesmo que esvaziar essa lei de seu conteúdo”.[9]
A importância da averbação da reserva legal na matrícula do imóvel evoluiu de tal maneira que, hoje, tem reflexo em outras questões inerentes a imóvel rural.
Por exemplo, a área de reserva legal, para ser excluída do cálculo de produtividade do imóvel, para efeito de desapropriação para fins de reforma agrária, deve ter sido averbada no registro imobiliário antes da vistoria.[10]
Em casos de desapropriação, o STJ firmou entendimento no sentido de que, exclui-se da base de cálculo da indenização, a área de reserva legal não averbada, ou sem plano de manejo sustentável aprovado pelo órgão ambiental competente para fins de exploração econômica da cobertura vegetal.[11]
No âmbito do ITR (Imposto Territorial Rural), para se excluir a área de reserva legal da base de cálculo do imposto, a área tem que estar averbada na matrícula[12], apesar de existirem julgamentos que admitem outros meios de prova.
O STJ já condicionou uma ação de retificação de área à averbação da reserva legal, consignando que da redação do art. 16, § 8º, do Código Florestal, a averbação da reserva é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei n.º 4.771/65.[13] Não obstante, o posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo ainda é pela inviabilidade de exigir a averbação, em sede de retificação de área, pela incompatibilidade de rito.[14]
É bem verdade que o Código Florestal dispôs sobre a obrigação de averbar, mas não sobre a oportunidade em que devia ocorrer tal averbação, somente prevendo o prazo de 30 anos para recomposição da cobertura vegetal.
Assim é que, os atos de registro de transmissão da propriedade, a qualquer título, junto ao Cartório Imobiliário, passaram a ser vistos como excelente oportunidade de se exigir a averbação da reserva legal, o que gerou grande discussão – uns defendendo o condicionamento dos atos notariais à prévia averbação, enquanto outros sustentando a não obrigatoriedade, justamente porque, embora o Código Florestal exigisse a reserva legal, não impunha o momento da sua averbação.
Em decorrência da ausência de prazo, adveio o Decreto Federal n.º 6.514, de 22/07/2008, alterado, posteriormente, pelo Decreto Federal n.º 6.686, de 10/12/2008, estipulando a data limite de 11 de dezembro de 2009 para os proprietários de imóveis rurais averbarem as áreas destinadas à reserva legal junto ao Registro de Imóveis competente, sob pena de multa.
Esse prazo foi mais uma vez prorrogado, para o dia 11 de junho de 2011, por meio do Decreto Federal n.º 7.029, de 10/12/2009, que instituiu o Programa Federal de Apoio à Regularização Ambiental de Imóveis Rurais, denominado “Programa Mais Ambiente”.
Por conta da existência de prazo para as propriedades terem suas áreas de reserva legal averbadas (primeiro, 11 de dezembro de 2009 e agora, 11 de junho de 2011), é que eventual exigência, por parte de Cartório de Registro de Imóveis, de condicionar o registro de qualquer título à prévia averbação, não pode subsistir. Mas é bom lembrar, essa matéria não é pacífica.
Por fim, não se pode olvidar que a área de reserva legal pode ser utilizada, sob regime de manejo florestal sustentável (art. 16, § 2º, do Código Florestal, com a atual redação da mencionada Medida Provisória n.º 2.166-67/2001) e é admitido o cômputo da área de preservação permanente (APP) para a formação da área de reserva legal, se a soma das duas áreas exceder 50% da propriedade rural, ou 25% em caso de pequena propriedade (art. 16, § 6º, do Código Florestal).
Como visto, o conceito de reserva legal evoluiu, especialmente ante a jurisprudência. O advento da Constituição Federal de 1988, certamente, foi o ponto de partida para os Tribunais interpretarem a legislação já existente de maneira mais abrangente possível, e, com isso, modificarem o entendimento que até então tinham sobre a matéria. Se assim não fosse, jamais as reservas florestais, no domínio privado, seriam recompostas, o que abalaria o objetivo da legislação, que é o de assegurar a preservação e o equilíbrio do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
A reserva legal representa, hoje, a maior preocupação dos proprietários rurais brasileiros. O prazo para averbação da reserva legal foi prorrogado, mas outras mudanças no Código Florestal estão por vir com relação a esse tema. Tais medidas estão sendo aguardadas com grande expectativa e representarão um fôlego a mais para os proprietários regularizarem seus imóveis rurais, mas é fato que, fugir da instituição, demarcação e averbação da reserva legal, a longo prazo, não será mais possível.
Gabriela Grassi Quartucci Guaritá Bento, advogada do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados
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[1] RESP 237.690/MS, DJ 13/05/2002.
[2] Precedentes: RMS 18.301/MG, DJ 03/10/2005; RESP 927.979/MG, DJ 31/05/2007; RESP 821.083/MG, DJ 09/04/2008; RESP 865.309/MG, DJ 23/10/2008; RMS 22.391/MG, DJ 03/12/2008; RESP 973.225/MG, DJ 03/09/2009. Nesse mesmo sentido, TJ/MG: Apelação 1.0144.07.020375-3/001, 27/08/2008; Apelação 1.0024.06.088466-5/001, 30/01/2009; A.I. 1.0343.07.000155-1/001, 31/03/2009; MS 1.0287.08.038173-7/001, 08/06/2009; A.I. 1.0303.08.008767-7/001, 16/06/2009; Apelação 1.0287.07.036573-2/001, 06/10/2009.
[3] TJ/SP: Apelação 852.897-5/9-00, 04/06/2009; Apelação 707.266-5/6-00, 15/10/2009; Apelação 704.126-5/6-00, 15/10/2009; TJ/MG: Apelação 1.0287.08.045854-3/001, 27/11/2009; RESP 948.921/SP, DJ 11/11/2009.
[4] Art. 2º As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.
[5] STJ: RESP 343.741/PR, DJ 07/10/2002; RESP 843.036/PR, DJ 09/11/2006; RESP 927.979/MG, DJ 31/05/2007; RESP 926.750/MG, DJ 04/10/2007; RESP 453.875/PR, DJ 11/11/2009. É também nesse sentido o posicionamento dos Tribunais de Justiça: TJ/MG A.I. 1.0525.08.132972-0/001, 26/05/2009; Apelação 1.0183.07.131762-6/001, 11/08/2009. TJ/SP: Apelação 406.965-5/1-00, 19/10/2006; Apelação 770.706-5/1, 25/09/2008; Apelação 889.838-5/6-00, 30/06/2009; Apelação 841.500-5/3-00, 15/10/2009.
[6] TJ/SP: A.I. 516.949.5/6, 29/06/2006.
[7] “§ 8º. A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código”.
[8] TJ/MG: Apelação 1.0702.07.392194-3/001, 05/06/2009 e Apelação 1.0702.07.358442-8/001, 26/06/2009 (“não cabe ao intérprete fazer distinção não inserida na lei.”).
[9] STJ: RMS 18.301/MG, DJ 24/08/2005.
[10] Precedentes do STJ: RESP 865.697/TO, DJ 09/03/2007; RESP 932.859/GO, DJ 09/02/2009; RESP 1.030.152/TO, DJ 11/05/2009; RESP 933.586/GO, DJ 23/06/2009 e também do próprio STF: MS 22.688/DF; MS 23.370/GO; MS 24.113/DF.
[11] RESP 608.324/RN, DJ 03/08/2007; RESP 867.085/PR, DJ 27/11/2007; RESP 905.783/RO, DJ 27/05/2008; RESP 617.409/MG, DJ 11/11/2009.
[12] RESP 1.125.632/PR, DJ 31/08/2009.
[13] RESP 831.212/MG, DJ 22/09/2009.
[14] TJ/SP: Apelação 299.377-4/1-00, 04/06/2009; Apelação 302.537-4/7-00, 05/10/2009.
Fonte: Original123 Comunicações
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