Publicado em: 09/08/2021 às 08:30hs
Costumo, em palestras, mostrar os heróis esquecidos da pecuária, responsáveis pelo sucesso que temos ao transformar praticamente só capim nos bilhões de dólares anuais que exportamos de carne bovina: uma fotografia que mostra microrganismos que habitam esses animais. São eles que, na luta pela sobrevivência, fazem o serviço duro de aproveitar a energia contida na parte fibrosa do capim, o que é impossível para os bovinos e demais mamíferos.
Nesse texto, não falaremos diretamente deles, mas da estrutura anatômica que é a parte inicial do trato gastrintestinal dos bovinos e que lhes abrigam: o rúmen. Além de abrigo, ele dá calor, ambiência e sustento. O “aluguel” e o “condomínio” são pagos com o que não serve mais e os hóspedes jogam fora. É uma simbiose perfeita, aperfeiçoada por milhões de anos de evolução entre os ruminantes e seus hóspedes, esses últimos chamados de microbioma ruminal.
A evolução do ser humano também tem estreita relação com o sucesso dessa simbiose, pois teria sido o maior conteúdo nutritivo da carne e seu maior aproveitamento pelo organismo que permitiu a redução do trato digestivo de nossos ancestrais ao longo das gerações. Segundo os paleontólogos, foi essa folga energética que permitiu que nosso perdulário cérebro pudesse evoluir para o tamanho e a capacidade que tem hoje. Enfim, temos que agradecer os microrganismos ruminais, também, por eu conseguir escrever e você, caro leitor, pelo menos até aqui, de ler esse texto! Abaixo, destacamos dez pontos importantes sobre o rúmen e suas implicações práticas na produção.
Como quase tudo que um animal atual tem, a explicação para sua existência é por alguma vantagem na luta pela sobrevivência e, se está aqui, é só buscar entender o motivo. A explicação básica é que o rúmen, ao permitir que o animal possa sobreviver de alimentos fibrosos, que mamíferos não tem enzimas para digerir, deu acesso ao material mais abundante do mundo, a celulose, bem como a outros carboidratos estruturais, igualmente abundantes. Além disso, o rúmen permite que o animal ingira o alimento rapidamente e possa passar menos tempo na atividade de alimentação, quando estaria mais vulnerável ao ataque de predadores.
Na prática, a produção de alimentos de alto valor biológico de capim permite que, segundo trabalho da FAO¹, apenas 14% do alimento usado na produção animal sejam de produtos que os seres humanos também comem, ou seja, os ruminantes reduzem a competição alimentar entre animais e humanos.
A ruminação, motivo do nome dessa subordem da classe dos mamíferos, os ruminantes, é uma adaptação evolutiva que ajudou a fazer o rúmen o sucesso que é: permitir uma remastigação do conteúdo ruminal e, assim, melhorar seu aproveitamento. Ele, portanto, está em linha com o fato de o animal poder ingerir o alimento rapidamente, sem perder muito tempo com a mastigação. Além de ajudar a aumentar a área exposta do alimento ao ataque dos microrganismos, a ruminação também é importante por estimular a produção de saliva que, rica em compostos que ajudam a manter o equilíbrio ácido-base, é fundamental para a saúde ruminal, sem contar a ajuda na reciclagem de nutrientes, com destaque para o nitrogênio. A ruminação ocorre em função exatamente ao estímulo realizado pela fibra da dieta mais resistente à degradação, que é a parte fisicamente efetiva que estimula os sensores no retículo, a porção mais anterior do rúmen.
Na prática, a falha na ruminação leva o animal a ter sérios problemas, como a acidose ruminal e outras doenças metabólicas. Aliás, a ruminação normal seria um indicador de saúde e alterações a este normal, indicativo de algum problema. Há estudos tentando correlacionar isso como forma de antecipar a identificação de problemas pelo monitoramento da ruminação.
Se o rúmen fizesse propaganda para os microrganismos aceitarem a proposta de ser seu novo endereço, ela poderia ser assim: “oferece-se amplo espaço, calor, manutenção das condições de temperatura e pH, fartura de nutrientes e água, constantemente renovados, e saliva em abundância! Tudo isso com muito movimento!”. Sendo propaganda, talvez não houvesse menção para ser um local de extrema competição, ainda que igualmente de notável cooperação, entre seus habitantes. Quem sabe um chamado provocador como “venha habitar o rúmen: onde só os bravos sobrevivem!”. O fato é que não existe falta de hóspedes, pois as vantagens superam esse desafio e até mesmo o que faz desafiador, ou seja, existir imensa diversidade de microrganismos, é o que também traz muitas oportunidades.
Apesar de o destaque ser para as condições ambientais e a oferta de substrato, a motilidade ruminal é um aspecto muito importante, auxiliando no contato dos microrganismos com o conteúdo ruminal e ajudando na sua passagem. Aqui vale lembrar outra característica desse “imóvel”: a porta de saída (orifício retículo-omasal) fica logo abaixo da porta de entrada (cárdia), de forma a obrigar a ingesta fazer o percurso por todo rúmen antes de sair e, assim, ser mais bem aproveitada.
Na prática, o fato de ser um ambiente tão favorável e com tantos milhões de anos de coevolução com o seu microbioma faz com que sua colonização no bezerro recém-nascido ocorra de maneira muito rápida e eficiente, fazendo com que tentar abreviar esse tempo não faça diferença.
As exigências nutricionais dos bovinos são maiores do que a dos microrganismos, o que, a princípio, pareceria ser suficiente para resolver a questão. Todavia, como todo pecuarista brasileiro bem sabe, na seca os animais perdem peso mesmo tendo pasto e, apenas suplementando com proteína, voltamos a ter ganho de peso. Isso acontece porque os microrganismos ruminais estão com deficiência proteica e a menor quantidade e atividade deles no rúmen faz com que o material menos digestível e indigestível se acumule, atrapalhando o consumo do pasto. Ao oferecer a proteína adicional que falta, o microbioma ruminal volta a crescer, aumenta sua atividade e, por consequência, a velocidade da digestão. A ingesta, então, segue seu caminho trato gastrintestinal à frente, fazendo com o que o animal volte a ter espaço no rúmen para consumir mais.
Na prática, fica claro, então, que os microrganismos têm uma exigência específica de proteína, que seria aquela que está disponível para seu uso, que chamamos de proteína degradável no rúmen (PDR). Inclusive, é possível ter uma dieta que tenha um teor de proteína acima das exigências animais, mas que, por ser pouco degradável, pode deixar os microrganismos com fome. Vale lembrar também que devemos nos preocupar com o consumo regular de sal mineral para atender as exigências minerais dos microrganismos.
Outra grande vantagem do ruminante é que ele nem precisa de proteína de verdade para funcionar, bastando uma fonte de nitrogênio não proteico (NNP), como a ureia ou o biureto. De novo, é o microbioma ruminal que tem essa capacidade. Desde que bem ajustada, a quantidade de NNP dentro da PDR e, esta, por sua vez, ajustada à energia da dieta, todo esse NNP vai virar proteína. É por esse motivo que ocorre a “mágica” que cada grama de ureia fornece cerca de 2,77 g de proteína ao animal. Essa materialização de proteína parece até “fake news”, mas não é.
Na prática, essa característica permite usar alimentos de baixa qualidade, pobres em proteína, apenas com a inclusão de ureia, para ganhos de peso modestos, ou até grandes economias com concentrado proteico em dietas de alto desempenho. Isso também ajuda na redução de uso de alimentos passíveis de uso para humanos, bem como menor competição por alimentos com animais monogástricos, como aves e suínos.
Os milhões de anos de evolução foram feitos com dietas à base de forragens e outras fontes vegetais, notoriamente pobres em gordura. Dessa forma, sem surpresa, o rúmen tem dificuldades para lidar com dietas mais ricas em gordura. A primeira ideia é que a gordura deve atrapalhar a adesão dos microrganismos às partículas da ingesta. Isso, de fato, ocorre, mas o efeito principal é toxicidade, sendo que gorduras mais ricas em ácidos graxos insaturados (isto é, com duplas ligações) são mais prejudicais. Por isso, as populações ruminais criaram a capacidade de colocar hidrogênios nos locais das duplas ligações, transformando-as em ligações simples. Com essa biohidrogenação, elas fazem com que um ácido graxo poli-insaturado passe a ser um ácido graxo menos insaturado ou um monoinsaturado passe a ser um ácido graxo saturado, reduzindo o problema.
Na prática, a biohidrogenação ruminal explica porque, em comparação com a carne de monogástricos, a carne bovina tem uma composição com maior proporção de ácidos graxos saturados. Também, que devemos nos preocupar em não colocar gordura demais, sendo comum a recomendação de não passar muito dos 6% da matéria seca da dieta.
Do que vimos até aqui, fica claro que o rúmen é, em si, um ecossistema completo, um sistema bem regulado em que o microbioma segue vivendo e torcendo para que nada mude muito. Como todo ecossistema, ele pode absorver distúrbios causados por efeitos externos, se adaptando às novas condições impostas, desde que as alterações estejam dentro de determinado nível e ocorram em um tempo em que lhe permita atingir novo equilíbrio. Mudanças intensas, feitas de maneira abrupta, podem ultrapassar a capacidade de retorno ao equilíbrio, causando problemas.
Na prática, devemos sempre fazer alterações nutricionais da maneira mais suave possível. Por exemplo, ao se perceber que a cana-de-açúcar usada no confinamento não será suficiente e o material disponível para substituir seja bagaço tratado e bagaço cru, em vez de esperar o final da cana e só então usar os bagaços, estes podem ser incluídos de forma crescente até substituírem todo o volumoso (e, obviamente, fazendo o mesmo com os demais ingredientes que terão que ser alterados para manter os níveis nutricionais).
Respeitar as limitações do rúmen e aproveitar suas capacidades únicas devem ser priorizadas, especialmente o uso preferencial de alimentos fibrosos. Além do fato já comentado de reduzir a competição de alimentos passíveis de uso por humanos e monogástricos em geral, a possibilidade de produzir com base em forrageiras ainda faz com que tenhamos custos menores e com os animais em uma condição mais próxima ao natural, o que é um fator de bem-estar animal. A carne produzida tem menos gordura, que pode ser considerada mais saudável, por ter mais vitaminas oriundas das pastagens e potencialmente ter melhor perfil de ácidos graxos. Por usar um mínimo de insumos, a carne bovina é o alimento convencional mais próximo do produzido sob as exigências para ser orgânico.
Na prática, por essas razões somos grandes exportadores de carne bovina que, raramente, apresenta problemas de não conformidade pelos órgãos de controle dos países para os quais exportamos. Também nos ajuda a ter bons argumentos de venda para carne brasileira, ainda subaproveitados.
Em aparente contradição ao item anterior, oferecer dietas com alto concentrado, que colocam o nutricionista no fio da navalha, se justifica na fase de terminação, revelando que o rúmen, em certas proporções, pode ser durão. O principal motivo da necessidade de aumentar o concentrado é porque, à medida que o animal vai engordando, cada vez fica mais difícil colocar gordura. Os ganhos em pastagem, mais modestos, não favorecem o depósito de gordura. Por isso, para os últimos meses de vida, usar uma dieta de alto concentrado facilita obter uma boa terminação mais rapidamente, inclusive com a chance de produzir carne de melhor qualidade, com chance de alguma melhor remuneração.
Na prática, é importante que, além de avaliar a relação benefício/custo da dieta, todos os recursos disponíveis para reduzir a chance de desconforto para o animal sejam usados. Assim, fazer uma dieta com um mínimo de fibra efetiva, de preferência com ingredientes com características favoráveis ao rúmen, uso de aditivos, e, por fim, fazer uma adaptação tranquila e um bom manejo de cocho, bem como qualquer outra ação no sentido de redução de riscos de problemas, deve ser priorizada.
Até aqui, desfilaram as qualidades do rúmen, mas, como tudo, tem que haver um ponto negativo que, no caso dele, é a emissão de metano. O metano é inevitavelmente produzido, pois ele é o ponto final na fila da fermentação ruminal. Ele está envolvido em um dos grandes desafios da humanidade por contribuir com o aquecimento global, fenômeno gerador das mudanças climáticas. Infelizmente, há muitos exageros quanto à sua contribuição, havendo várias polêmicas quanto a isso e, certamente, o metano entérico não figura nem em primeiro, nem em segundo plano, com outros setores, como o de energia, sendo os grandes vilões.
Na prática, o metano é uma pequena taxa por tantas vantagens que o rúmen trás. Além disso, é uma ineficiência do processo que pode ser bastante reduzida, já com excelentes resultados e ainda muito por vir.
O rúmen é alvo de intensos estudos, e novas técnicas têm permitido um avanço muito grande, particularmente no melhor conhecimento do microbioma ruminal, as interações dos microrganismos entre eles e destes com o seu hospedeiro. Podemos vislumbrar a criação de aditivos mais eficientes, um melhor entendimento dos efeitos das dietas nos resultados, permitindo uma maior chance de obter os resultados esperados e, certamente, grandes possibilidades de melhoramento animal. Enfim, esse nosso velho conhecido ainda guarda muitos mistérios, mas cada vez menos escondidos em função dos avanços da ciência. O futuro do rúmen promete ainda muitas boas notícias e cada vez menos metano!
¹Food and Agriculture Organization, órgão das Nações Unidas
por Sergio Raposo de Medeiros - Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.
Fonte: Scot Consultoria
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