Análise de Mercado

Como um italiano revolucionou a cafeicultura no Brasil com um concurso de qualidade do café

Iniciativa de Ernesto Illy, voltada ao café expresso, completa 30 anos em 2020 e representa um marco no setor do país


Publicado em: 16/10/2020 às 13:00hs

Como um italiano revolucionou a cafeicultura no Brasil com um concurso de qualidade do café

É impossível contar a história da cafeicultura brasileira sem falar do químico Ernesto Illy, presidente da torrefadora italiana Illycaffè. Seu Illy, como era carinhosamente conhecido, faleceu em 2008 e deixou um legado importante para o setor. Ele foi o grande responsável por despertar os cafeicultores para os cuidados que garantem a qualidade do fruto, da lavoura à xícara.

Numa época em que só se conhecia o café commodity, seu Illy criou o Prêmio Brasil de Qualidade de Café para Espresso, o primeiro concurso do país para cafés especiais. Depois da sua morte, a competição passou a chamar Prêmio Ernesto Illy de Qualidade Sustentável do Café para Espresso, com premiações em três etapas: regional, nacional e internacional. Em 2020, a iniciativa completa 30 anos.

“A instituição do Prêmio Illy representou a grande virada do café do Brasil rumo à melhoria da qualidade e ao aumento do consumo em decorrência disso”, diz Nathan Herszkowicz, presidente executivo do Sindicato da Indústria do Café do Estado de São Paulo (Sindicafé-SP).“A premiação teve o mérito de mostrar ao mercado que o Brasil tinha, sim, cafés de qualidade similar ou mesmo superior aos melhores cafés do mundo.” 

O prêmio foi a estratégia para resolver o gargalo do suprimento. “No final da década de 1980, de 40 amostras de café brasileiro que chegavam a Trieste (sede da Illy na Itália), o senhor Illy aprovava uma ou duas”, diz o pesquisador Aldir Teixeira, consultor científico da Illy. Mas o italiano nunca abriu mão do café arábica brasileiro, que representava (e ainda representa) 50% do blend da marca, sendo responsável pelo bom corpo, doçura e notas de chocolate do expresso Illy.

"Ernesto Illy foi pioneiríssimo, lançou a sementinha para falarmos em cafés especiais no país". Vanúsia Nogueira, diretora da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA)

No início dos anos 1990, o senhor Illy desembarcou no Brasil, visitou produtores e descobriu que na lavoura o fruto tinha uma qualidade que se perdia nas etapas de pós-colheita e armazenagem. Outro problema era a mistura de cafés de vários produtores nas firmas exportadoras. Com isso em mente, ele traçou um plano com três alicerces: lançar um prêmio para os cafés de qualidade, comprar direto do produtor e pagar um preço melhor, acima da cotação da commodity na Bolsa de Nova York.

Para implementar seu plano, Ernesto Illy contratou Aldir Teixeira, que criou o regulamento da competição e preside a comissão julgadora desde a primeira edição do prêmio, em 1991. “Com essa medida, o doutor Illy mudou totalmente a cafeicultura no Brasil, porque antes todos os cafés produzidos aqui tinham o mesmo preço, independentemente de ser um café bom ou ruim”, explica Teixeira.

“Ernesto Illy foi pioneiríssimo, lançou a sementinha para falarmos em cafés especiais no país. É um trabalho de longo prazo, simplesmente brilhante, que hoje segue com o Andrea e a Anna (filhos de Ernesto)”, diz Vanúsia Nogueira, diretora da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), entidade que surgiu no mesmo ano da chegada da Illy para os cafés especiais. Na época, o Brasil era conhecido como o maior produtor de café em volume, e não em qualidade. Hoje, a produção nacional de cafés especiais está em torno de 10 milhões de sacas por ano, segundo a BSCA.

Com o incentivo financeiro, que em alguns anos chegou a ser mais de 30% maior em relação ao preço da commodity, o cafeicultor começou a buscar informações para produzir um fruto de qualidade. A Illycaffè foi parceira nessa caminhada. Toda amostra de café enviada para a torrefadora – não importa se para o prêmio ou para a compra – vai para o laboratório, que checa se não há resíduos de agroquímicos. Se estiver tudo certo, o processo continua.

Se a amostra for reprovada, o produtor recebe um laudo. “Temos de respeitar o trabalho de um ano do cafeicultor. Não podemos com uma canetada reprovar, sem explicar o porquê”, costumava dizer seu Illy. Não por acaso, Teixeira nunca parou de pesquisar quais procedimentos na lavoura resultavam em problemas na xícara. Por exemplo: o grão ardido é um defeito vinculado ao pós-colheita. “Significa que, depois de colher, o produtor deixou o café amontoado, provocando uma fermentação que deixa o grão ardido, com gosto de vinagre”, diz o consultor.

Gerson Naimeg, falecido em 2014, viu o trabalho de uma vida ser reconhecido em 1992, quando ganhou a segunda edição do Prêmio Illy. Uma década antes, ele havia deixado o Paraná após três geadas consecutivas e comprado terras para um novo recomeço em Coromandel (MG), no Cerrado mineiro.

A premiação, de US$ 30 mil à época, foi a coroação de um esforço de décadas. “Meu pai ficou muito orgulhoso, porque ser fornecedor de café da Illy agrega valor e abre portas”, diz José Aparecido Naimeg, o primogênito dos seis filhos cafeicultores de Gerson. José Aparecido lembra até hoje que Ernesto Illy pagou US$ 99 pela saca de café, enquanto o mercado pagava US$ 50.

De lá para cá, os Naimeg foram várias vezes finalistas do prêmio e nunca deixaram de fornecer café para a torrefadora italiana. Hoje, eles têm 540 hectares de cafezais e são categoria diamante do Clube Illy, um programa de recompensa aos cafeicultores pela fidelidade no fornecimento de grão de qualidade.

"A Illy sempre passou a mensagem de sustentabilidade, que a gente precisa amar o que faz, amar as pessoas que trabalham ali, amar a natureza"

Ednilson Dutra, produtor de café da Zona da Mata mineira

Já a história dos irmãos Dutra – Ednilson e Walter – com a Illy começou em 1999. O pai deles havia morrido e eles foram ao Banco do Brasil resolver pendências. Na agência, viram o cartaz do concurso de café e mandaram amostras. “Recebemos uma carta da Illy dizendo que o café era bom, que eles tinham interesse em comprar, mas não participaria do prêmio naquele ano”, diz Ednilson.

Aquela venda foi o divisor de águas para a família, que começou produzindo café em 1 hectare em São João do Manhuaçu (MG) e hoje tem 900 hectares na região. A partir dali começaram a frequentar os cursos da torrefadora e trocar experiências com outros produtores.

Em 2000, os irmãos ficaram na quarta colocação no Brasil do Prêmio Illy; em 2007, conquistaram o segundo lugar, o que os animou a melhorar cada dia mais. “Mudou nossa vida, mudou a forma de pensar. A Illy sempre passou a mensagem de sustentabilidade, que a gente precisa amar o que faz, amar as pessoas que trabalham ali, amar a natureza. Deixar aquele lugar para a próxima geração do mesmo jeito ou até melhor do que pegamos”, afirma Ednilson.

Com a chancela da Illy, os irmãos começaram a vender café para vários continentes. “Temos muitas certificações, mas a melhor é ser fornecedor da Illy. Sempre que nos apresentamos a um comprador e dizemos que fornecemos para eles, somos tratados de forma diferente.”

A Illy também fez toda a diferença na vida dos irmãos Araújo. Pequenos cafeicultores em Manhuaçu (MG), eles assumiram a propriedade da família, de 80 hectares de café, em 2013. “Meu avô, meu pai e meu tio sempre venderam café commodity, mas a gente via potencial para mais, porque produzimos café na montanha, a 1.000 metros de altitude”, diz Rafael Marques de Araújo.

Atentos ao que acontecia nas redondezas, os irmãos investiram num despolpador de café. “A gente via os grandes cafeicultores fazendo café cereja descascado e se destacando em concursos e pensamos: somos pequenos, mas também conseguimos. Vamos caprichar bastante.”

A estratégia não podia ter dado mais certo. Em 2014, a família ficou em quarto lugar no Prêmio Illy e, em 2016 e 2018, os irmãos foram finalistas do concurso e representaram o Brasil na etapa internacional em Nova York, onde são divulgados o primeiro, o segundo e o terceiro colocados de cada país, bem como o melhor entre todos os nove países participantes.

Além do prêmio em dinheiro e do valor adicional pago pelas sacas de café, os irmãos Araújo ressaltam o respaldo dado pela torrefadora italiana. “Nos eventos da Illy estão as principais pessoas do setor, trocamos muita informação com produtores, com os estudiosos da qualidade e da sustentabilidade do café, o que nos ajuda a crescer”, completa Rafael.

Mas nem tudo foram flores nestes quase 30 anos. Como toda ópera italiana, o Prêmio Illy teve seus dramas, como a história de Paulo Takano, vencedor da 12ª edição. Desanimado com o preço do café, o cafeicultor havia cortado todo o cafezal quando soube que tinha ficado em primeiro lugar.

Para a 30ª edição, o drama é a pandemia, que afetou as vendas de café fora do lar e obrigou a torrefadora a mudar as regras. Nas edições anteriores do prêmio, a amostra de café enviada deveria ser representativa de um lote de no mínimo 80 sacas e no máximo 1.000 sacas de café. “Este ano, o lote máximo é de 80 sacas”, finaliza Teixeira.

Fonte: Rede Social do Café

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