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Não se pode brincar com a inflação, alerta economista da XP Investimentos

A economista-chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, diz que a política econômica de Dilma chegou ao limite e alerta: não se pode brincar com a inflação


Publicado em: 21/11/2014 às 01:00hs

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Zeina Latif: Economista-chefe da XP Investimentos
Por: Eugênio Esber

Trabalhando, Zeina Latif gosta de ouvir música clássica. É como consegue amaciar uma rotina que inclui leituras técnicas e produção de análises, especialmente no campo da política monetária – a área em que focou suas pesquisas de mestrado e doutorado pela USP. O posto de economista-chefe da XP Investimentos não tem dado trégua a esta paulista de Campinas, que aprecia cinema argentino, leituras de fundo histórico, sambas antigos e jazz. Mas não é a falta de tempo que a incomoda, e sim a partitura da política econômica de Dilma Rousseff, mais intervencionista que a de Lula e marcada por políticas expansionistas que, para Zeina, cobram uma conta elevada. “Não se pode brincar com a inflação”, adverte, preocupada com o risco de que o país perca o chamado grau de investimento. “O mundo já não está disposto a financiar o Brasil como estava.”

O que deve mudar na política econômica no segundo mandato de Dilma Rousseff?

No primeiro mandato, Dilma tentou um experimentalismo – a tal de “nova matriz econômica”. Ela testou a adoção de taxas de juros mais baixas, experimentou fazer uma expansão fiscal mais rigorosa, utilizou os bancos públicos, expandiu bastante o crédito... Em suma, foram políticas mais expansionistas do que era o padrão, e com menos preocupação com os desequilíbrios macroeconômicos – no caso, a inflação {vista como}, um bom preço a ser pago pelo crescimento. Esse foi um dos elementos. O outro lado dessa política foi o chamado nacional-desenvolvimentismo.

Como se expressou esse viés desenvolvimentista?

Na forma de uma política setorial – isso de o governo escolher {setores} vencedores. E também por um maior intervencionismo estatal, seja na administração de tarifas públicas, na concessão de benefícios aqui e ali, ou seja na promoção de crédito subsidiado... Enfim, esse resgate do nacional-desenvolvimentismo, e esse experimentalismo expansionista em todos os sentidos – fiscal, monetário e creditício – foram as duas marcas do primeiro governo Dilma. Na realidade, isso havia começado um pouco antes, como resposta do governo Lula à crise de 2008. O que Dilma fez foi dar continuidade e usar amplamente essas estratégias – mesmo quando já havia sinais de que a inflação começava a preocupar.

E como será neste segundo mandato de Dilma?

Acho que a tendência, agora, é haver algum recuo – ainda que não muito grande – nessa forma de gestão da política macroeconômica. Não existe mais espaço para toda aquela expansão fiscal, e se o governo insistir nessa estratégia o país corre riscos - principalmente o risco de perder o Investment Grade. O mundo já não está tão disposto a nos financiar como estava no passado. O cenário internacional não é o mesmo. Da mesma forma, acho que ficou claro que não se pode brincar com a inflação. A inflação já está no teto da meta. Obviamente, isso vai exigir um cuidado maior na gestão da política econômica, dar alguns passos atrás. Significa voltar ao que foi, por exemplo, a gestão do Lula, principalmente no primeiro mandato? Não, aí eu já acho que não. Acho que há uma dificuldade para isso.

Que dificuldade?

Dificuldades inclusive de ordem política. A gente sabe que, quando os políticos descem do palanque, a história é diferente. Há acordos de campanha que precisam ser cumpridos. E à luz do que foram os acordos, e tendo em vista o que foi esta campanha, é difícil para o governo implementar uma austeridade tão grande que traga a inflação para 4,5%, que é o centro da meta. Tanto é assim que o discurso governamental é de que a inflação está sob controle, ou seja {para o governo}, o índice de 6,5% está bom... Não se vê no discurso governamental um direcionamento do tipo: “Nós temos o compromisso de ir para o 4,5%”. E isso obviamente tem repercussões, principalmente no campo fiscal. Porque é no âmbito fiscal que a gente tem o maior problema, uma vez que situação macroeconômica não oferece espaço para manter aquele ritmo de expansão e testar uma taxa de juros mais baixa, expansão de crédito...

O intervencionismo estatal no campo econômico prosseguirá no novo mandato de Dilma?

Acho que essa linha de atuação nacional-desenvolvimentista é algo difícil de mudar. Afinal, envolve uma questão até de crenças do governo, que acredita que é assim que tem de ser feito. Veja que as desonerações agora viraram lei. Há uma defesa muito forte das políticas baseadas na atuação dos bancos públicos. Mas o governo pode diminuir a intensidade dessa política, e tende a fazê-lo, por causa do impacto no quadro fiscal. Sem dúvida, não há mais espaço. Lá atrás a gente tinha um superávit alto. Agora, está próximo do zero quando descontada a arrecadação temporária, que é o que os economistas chamam de superávit primário recorrente. Pois o nosso superávit recorrente está no zero. Então ficou muito complicado. Você não tem espaço. O nacional-desenvolvimentismo não cabe mais no bolso. Agora, a filosofia em si, a inspiração, as crenças, continuam valendo.

Não se deve esperar, portanto, mudanças de rota?

Não vejo o governo numa agenda de desmontar o nacional desenvolvimentismo e pensar em políticas mais horizontais, que promovam um ganho de competitividade na economia como um todo em vez de servir à proteção de setores. E aqui faço uma distinção entre o primeiro governo de Lula e o primeiro governo de Dilma. No Lula 1, você tinha políticas cujo objetivo era reduzir o risco e o custo de operar no Brasil. Veja a lógica da criação do empréstimo consignado. Na hora em que você faz um consignado, está reduzindo o risco de operação do crédito, e aí, por causa disso, a oferta sobe, a taxa de juros cai e a demanda obviamente reage. Essa era a lógica: reduzir custos de operação. Essa não é a agenda no nacional desenvolvimentismo, que traz a ideia de proteger setores. É beneficiar alguns setores que se julga que são estrategicamente importantes. É o incumbente que não acredita nas forças do mercado e escolhe os setores que quer proteger. Enquanto no Lula 1 a gente teve uma agenda mais liberal, agora, em Dilma 1, tivemos uma agenda mais intervencionista e não me parece que teremos mudança nisso. Claro, como não cabe mais no orçamento, obviamente que teremos uma intensidade menor. Mas eu acho que essa ideia de administrar tarifas, essa ideia de proteger setores, acho que isso vai continuar valendo.

Até onde vai, então, o ajuste que passa a frequentar o discurso do governo?

O governo não fala em forte ajuste. Fala em ajustes. Agora é que começa a surgir referência a um ajuste fiscal mais forte. Mas, politicamente, não há muito espaço. Essa agenda de um ajuste mais profundo não me parece ser a agenda do governo. Outro economista terá outro diagnóstico, mas eu não tenho a mesma crença que o governo tem nas políticas desse chamado nacional-desenvolvimentismo. Sou crítica a isso. Eu prefiro políticas liberais. Desconfio da ação estatal no Brasil. Acho que essa ação estatal, com esse grau de intervencionismo, mais atrapalha do que ajuda.

A agenda de Lula, no primeiro governo, com Meirelles no comando do BC, agradou-lhe mais por ser tendente à visão liberal?

Ah, não tem dúvida. A agenda do Lula 1 era uma agenda liberal. E a cabeça, ali, era o Palocci – o Meirelles foi um soldado. Agora, a orientação é outra. E aquilo que hoje se coloca – que é só fazer alguns ajustes – não é a minha visão. Eu acho que para a gente retomar um crescimento de verdade da economia brasileira, e acelerar o crescimento de longo prazo, em vez de um simples voo de galinha, não é uma questão de fazer ajustes. É uma questão de ter uma outra agenda, de promover uma reorientação da agenda na direção de políticas mais liberais e mais horizontais.

O modelo de induzir crescimento econômico via estímulo ao consumo está esgotado, e deve dar lugar a investimentos em infraestrutura?

Não, não. Veja, Dilma estimulou o investimento. É engano acreditar que ela só estimulou o consumo. O problema é a forma de fazer. Você pode escolher fazer políticas horizontais, políticas que reduzam o custo país, ou você pode fazer protegendo setores. Ela também estimulou investimento, mas usando o BNDES e protegendo, beneficiando setores escolhidos. O investimento cresceu, a gente teve um aumento enorme de benefícios fiscais, tributários e de crédito para o setor produtivo. Não foi tudo consumo. Falar que é um modelo de consumo não é o ponto. Teve também o consumo. O problema é que o estímulo ao crescimento na minha visão não funcionou. O argumento governamental é assim: “Nossa, ainda bem que a gente fez, porque se não tivesse feito seria pior”. O meu argumento é: foi porque fez que não deu certo. Porque eu não acredito nessas políticas. Não é que você não possa fazer, mas tem de ser muito cauteloso.

Em que sentido?

Tem de estabelecer metas e implantar por tempo determinado. Enquanto estiver funcionando bem, ok. Não funcionou, para. A boa política pública é aquela que tem início, meio e fim. A gente não observa esse cuidado no Brasil. Qualquer intervenção do Estado na economia nunca vai ser neutra. Sempre vai ter alguém que vai perder. E aí cabe ao gestor responsável o tempo todo tentar medir se o benefício supera os custos. E isso o tempo todo. E na minha visão de quem acompanha a macroeconomia, quando a inflação sobe é porque tem alguma coisa errada.

O programa de PPPs do governo não decolou, e parte das explicações relacionou o desinteresse do setor privado às condições que foram oferecidas aos investidores. Essa relação pode se tornar mais amigável?

Olha, analisando o que aconteceu com o programa de concessões, vejo que houve um processo de aprendizado ali. Havia no governo uma insistência muito grande em limitar a taxa de retorno. A impressão que dá é que existe um certo preconceito em relação a retorno elevado. Mas é importante colocar que o Brasil é um país com risco elevado, e isso acaba colocando a expectativa de retono em patamar mais alto. É assim, ué, não tem jeito... Havia talvez até uma questão ideológica, uma dificuldade com isso. Mas o que se percebe é que foram feitas algumas flexibilizações ao longo do processo. Foram aprendendo, enfim. Eu não sei a profundidade disso, é difícil avaliar. Acho que agora a gente tem testes pela frente, nas próximas concessões, porque o filé mignon já foi. Aí vai ser um teste importante. É na hora da dificuldade que a gente vê para onde vai a orientação do governo. Acho que o governo não está totalmente insensível a isso. Vejo que existe um aprendizado. O que me preocupa é a velocidade deste processo. Porque é muito grave o país estar estagnado, ou crescendo pouco.

Tendo vencido uma eleição com pequena margem de votos, Dilma terá capital político para dobrar resistências internas de seu partido e fazer os ajustes que entender necessários de política econômica?

Aí é coisa de campanha. A campanha dela teve um viés mais populista. E isso obviamente cobra o seu preço, tem acordos por trás. Então obviamente existe uma dificuldade para mudar. Mas, se por um lado tem essa questão dos compromissos de campanha, por outro lado a gente tem hoje uma oposição mais forte, e eu acho isso bom, acho saudável para a democracia do país. É uma oposição mais forte e mais combativa, mas não acredito que seja uma oposição irresponsável. A ninguém interessa uma crise institucional, um caminho de radicalização, de estagnação. Claro que quando a gente estiver chegando perto de 2018 isso pode mudar um pouco. Aliás é interessante observar que, superada a eleição de eleição de 2014, no dia seguinte já tinha discussão sobre 2018. É uma pena. Mas, de todo modo, vejo que temos instituições que são mais sólidas que, por exemplo, as de uma Argentina.

Até que ponto o cenário externo será fundamental para a recuperação da economia brasileira?

Não tem jeito, sempre estaremos ligados ao que se passa lá fora. Na década passada, o mundo passou por um ciclo econômico excepcional. O comércio mundial cresceu num ritmo de 7%, 8% em média naqueles anos. A China entrava na OMC, os preços de commodities se moviam para cima, e aquele ciclo mundial foi importante para o sucesso do governo Lula, quando atingimos o Investment Grade e o Brasil virou credor líquido em dólar. Esse ciclo passou. Mas o mundo não vive um quadro de crise. É equivocada essa visão do governo de que existe uma crise lá fora. Não existe mais uma crise. A gente está no chamado “new normal”. Esse “new normal” é medíocre, sim, é um mundo mais difícil – mas a gente não tem um mundo colapsando.

E o quanto este mundo em crescimento medíocre afeta o Brasil?

É claro que este mundo mais difícil para emergentes nos impacta e reduz o potencial de crescimento do Brasil. Mas onde é que a gente vê que temos problemas internos e erros acontecendo aqui dentro? É quando comparamos o Brasil com países pares. E a gente percebe que o mundo avançou e que os países pares do Brasil foram em frente, ainda que lentamente – e o Brasil estagnou, ou cresceu muito menos que o mundo. E isso já há algum tempo. Quando se olha a evolução da produção industrial, o que se vê é uma indústria estagnada desde 2010. Mas outros países evoluíram, e se abriu uma boca de jacaré entre o Brasil e o mundo. São evidências de erros de gestão de política econômica que estamos cometendo.

Entre os fundamentos que podem fazer o Brasil perder a condição de grau de investimento, qual deve merecer prioridade no segundo mandato de Dilma?

A gente tem que crescer. O Brasil é um país que ficou mais caro do que o usual. É preciso estancar o processo de enfraquecimento da economia brasileira, e implantar medidas horizontais para a indústria voltar a ser competitiva. E, quando à inflação, é preciso colocar a política macroeconômica no lugar, a partir de um ajuste fiscal. O baixo crescimento do Brasil, ironicamente, é fruto da ação estatal: um Estado que não enxuga custos, uma taxa de poupança baixa e inflação alta. Essa história de política fiscal expansionista, para fazer crescer a economia, só é válida até o momento em que não causa inflação. Na hora que a inflação vem esses ganhos se apagam porque o crescimento vira voo de galinha. Crescimento de longo prazo é expansão de oferta não de demanda. E aí se está diante de uma questão ideológica do governo.

Há líderes empresariais que criticam políticas que escolhem vencedores. Mas em muitos casos os porta-vozes defendem benefícios específicos para seu setor. Há uma divisão no pensamento empresarial sobre política industrial?

Há, sim, é claro. Veja, quando a gente pensa em políticas horizontais, em meritocracia e tudo mais, isso é bom para a sociedade. Para o empresário, o que ele quer é ser protegido. Esse é o ideal que ele tem. Ele não quer a disputa, a concorrência. A concorrência é boa no nível macro. É boa para a sociedade, para o país como um todo. Mas no nível individual, o empresário não quer concorrência. Cabe ao governo, portanto, estar atento. Se resolver estimular algum setor por alguma razão, isso tem de ter início, meio e fim. E metas a serem cumpridas. E que vão ser monitoradas, ter governança. É recurso público envolvido. Se você protege, protege, protege, corre o risco de fazer isso para sempre. É o caso da Zona Franca de Manaus. Porque uma vez que você dá um benefício, naturalmente você gera um grupo que diz: “Ah não, não vão tirar meu benefício”. E a sociedade muitas vezes não consegue enxergar isso, porque o benefício é concentrado, mas o custo é difuso. Então a sociedade não entende bem o que está acontecendo. Nesse aspecto, essa vertente nacional desenvolvimentista tem um quê de autoritário, porque não passa poder de decisão transparente, via orçamento, com debate democrático. Ela implica um certo, entre aspas, “autoritarismo econômico”. Não passa pela deliberação da sociedade.

Fonte: Revista Amanhã Autor: Eugênio Esber

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