Publicado em: 25/11/2024 às 08:00hs
Nas décadas de 1980 e 90, o Brasil dispôs do mais extenso programa de controle biológico de uma praga – a lagarta-da-soja, Anticarsia gemmatalis – em âmbito global, utilizando um vírus letal para a mesma. Esse vírus é altamente contagioso e eficiente, dizima a população da praga, dispensando inseticidas químicos, sendo inócuo para insetos benéficos e para animais superiores.
Entrementes, o programa foi vítima do seu próprio sucesso. Agricultores passaram a produzir o bioinseticida, coletando e conservando lagartas supostamente contaminadas pelo vírus, para aplicação na safra seguinte. Ao invés dos ótimos resultados anteriores, pipocaram relatos de ineficiência.
A investigação do insucesso demonstrou a péssima qualidade da produção própria. Nas palavras de um líder do programa: “havia tudo menos vírus nas amostras coletadas junto aos agricultores!”. Um exagero, porque havia uma pequena proporção de vírus, mas insuficiente para controlar a praga. Essa foi uma das causas do final precoce de um programa que tinha tudo para ser um case mundial de sucesso, beneficiando agricultores, consumidores e o meio ambiente até hoje.
Lição aprendida? Aparentemente, não.
Quatro décadas se passaram e os bioinsumos tornaram-se uma tendência mundial para solucionar alguns problemas da agropecuária, progressivamente substituindo a Química pela Biologia. Consentaneamente, foi instituído, no Brasil, o Programa Nacional de Bioinsumos (PNB) pelo Dec. 10.375 (26/5/20). Tramita na Câmara dos Deputados o PL 658/2021, que ratifica o PNB e dispõe sobre a classificação, o tratamento e a produção de bioinsumos por meio de produção própria (on-farm); no Senado Federal tramita o PL 3.668, que dispõe sobre a produção, o registro, comercialização, uso, destino final dos resíduos e embalagens, o registro, inspeção e fiscalização, a pesquisa e experimentação, e os incentivos à produção de bioinsumos para agricultura.
A definição de bioinsumos adotada nas normativas é genérica e engloba mais de uma centena de possíveis produtos de origem vegetal, animal ou microbiana com ação em setores variados da agropecuária.
Em relação a outros países, Argentina e Colômbia estão no mesmo patamar do Brasil, com programas de incentivo e normatização da matéria. Não há registros de programas similares nos EUA, onde vigora a produção comercial de bioinsumos seguindo a legislação genérica, ao contrário da Europa, onde o assunto é altamente regulado.
Recentemente a General Directorate of Health and Food Safety (DG Santé), que zela pela saúde pública e inocuidade dos alimentos na União Europeia, estudou os problemas ocasionados por microrganismos utilizados na agricultura, como Bacillus amyloliquefaciens e B. thuringiensis (Bt). Foram identificados impactos sobre a biodiversidade e contaminações em alimentos, o que também foi investigado no estudo de Bonis et al. (bit.ly/480IEKc). Os cientistas afirmam que o Bt foi detectado em 49 episódios de doenças por contaminação alimentar na França (2007-2017). Em 19 deles, o Bt foi o único microrganismo detectado, tornando-o o agente causal mais provável. Mais de 50% dos isolados de Bt foram coletados em vegetais crus, em especial tomate (48%). Esse estudo, e a preocupação da DG Santé, demonstram que bioinsumos podem apresentar riscos elevados e devem ser produzidos e aplicados com as melhores técnicas e o máximo rigor.
No Brasil, relatos preocupantes com sérias consequências da produção on-farm crescem a cada dia. Citaremos três exemplos ilustrativos:
Em síntese, os estudos mostram a probabilidade de baixa qualidade da produção de bioinsumos on-farm, além de riscos à saúde humana, que afetam diretamente o produtor e que podem conduzir a outros desdobramentos indesejáveis no mercado. O direito de produção própria solicitado por alguns setores agrícolas conflita com os direitos ao meio ambiente, à saúde humana e ao coletivo, se não houver a observância das Boas Práticas de Produção.
É praticamente impossível eliminar microrganismos introduzidos no solo e uma aplicação maciça de patógenos pode resultar em grandes problemas fitossanitários e impactos negativos no meio ambiente. Microrganismos não conhecem cercas, de modo que uma área vizinha poderá ser contaminada, ferindo o direito coletivo.
Os perigos da produção on-farm são ainda maiores ao preconizar que não seriam necessários assistência de profissional qualificado, controle de qualidade, licença ambiental e respeito à propriedade intelectual e industrial. Em relação a esses dois últimos itens, as implicações seriam de desestímulo à pesquisa por novos bioinsumos e no desinteresse em desenvolver ou introduzir inovações tecnológicas no Brasil, tanto por empresas privadas quanto por instituições públicas. Ou seja, poderia desestimular a atual adoção acelerada de bioinsumos, provocando um retorno aos insumos químicos tradicionais.
Em absoluto somos contra a produção on-farm de bioinsumos. Deixamos claro que nossa intenção, com este artigo, é fomentar a discussão da necessidade de a produção de bioinsumos on-farm ser acompanhada de Boas Práticas de Produção, com severas medidas de segurança, garantindo que o agricultor tenha acesso a produtos de qualidade, que respeitam normativas de recursos genéticos, ambiental, de segurança do trabalhador, sendo produzido sob responsabilidade técnica de profissional capacitado e comprovação da qualidade do produto final, que beneficie o próprio produtor, os consumidores e o meio ambiente.
Por Décio Luiz Gazzoni, pesquisador da Embrapa Soja, membro da Academia Brasileira de Ciência Agronômica, Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), CESB e ABCA; e Mariangela Hungria pesquisadora da Embrapa Soja, membro da Academia Brasileira de Ciência Agronômica, ABC e ABCA.
Fonte: CCAS
◄ Leia outros artigos