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Garantia de origem no agronegócio do leite


Publicado em: 29/12/2010 às 01:00hs

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O tema da garantia de origem tem ganhado relevância no mercado de produtos lácteos, seja para evitar problemas de contaminação ou preservar atributos valorizados pelo consumidor. Apesar do crescimento dos últimos anos, a cadeia produtiva brasileira com base na pecuária bovina de leite sempre apresentou deficiências que dificultam a oferta desse tipo de garantia por parte dos processadores. Neste artigo são analisados alguns aspectos da produção agropecuária, das estratégias dos processadores e do mercado consumidor que influenciam na oferta de garantia de origem para os produtos derivados do leite.

Há uma tendência nos mercados de alimentos em âmbito global de se oferecer ao consumidor garantias de origem que superam aquelas exigidas pela legislação ou por órgãos de fiscalização em questões de sanidade animal e de impactos ambientais. Essas garantias de caráter privado podem estar relacionadas à geração de benefícios às comunidades envolvidas no suprimento de matérias primas, à presença de diferenciais que seriam obtidos somente em determinada região ou à certificação de processos produtivos para determinados atributos (orgânico, kosher e outros).

Os principais problemas da etapa de produção agropecuária de leite no Brasil são relacionados à dispersão geográfica, disparidades de escala e tecnologia entre os produtores e altos custos de logística do suprimento, em razão das distâncias e das condições precárias das estradas. Esses problemas dificultam tanto as atividades de fiscalização pelo Estado para garantir os atributos básicos de sanidade dos produtos finais quanto as estratégias de processadores que pretendem oferecer garantias de origem adicionais. 

A produção de leite no Brasil apresenta uma evolução de crescimento consistente nas últimas décadas. Conforme dados do IBGE, a quantidade adquirida por processadores passou de 11,08 bilhões de litros em 1999 para 19,6 bilhões de litros em 2009. No segundo trimestre de 2010, a aquisição de leite atingiu 3,9 bilhões de litros, com produtores presentes em quase todas as unidades da Federação. A dispersão geográfica pode ser observada  na Figura 1, conforme a mesma fonte. Minas Gerais adquiriu 27,8% do total nacional, seguido pelo Rio Grande do Sul, com 12,8%.

A dispersão da produção afeta a competição entre as unidades de processamento na montagem dos sistemas de suprimento. A viabilização das plantas industriais depende da existência de produtores operando em escalas adequadas e localizados a distâncias que permitam a coleta com custos suportáveis. Em tese, se existem poucas unidades de produção de alta escala, quanto maior a dispersão geográfica dos produtores, maiores seriam os custos de oferecer a garantia de origem, pelas dificuldades de acompanhamento das condições de operação do produtor e maiores os riscos de atrasos na programação de coleta.

A oferta de garantia de origem por processadores nas condições de dispersão da produção no Brasil pode ser viabilizada com a descentralização das unidades de processamento, operando em escalas compatíveis com a presença de produtores na região. Entretanto, a reorientação estratégica dos processadores de pequeno e médio porte para oferecer garantia de origem depende de recursos financeiros e competências organizacionais que nem sempre estão disponíveis para os empreendedores e fornecedores. Uma alternativa para solucionar essas deficiências seria a parceria com agentes públicos, entidades empresariais e entidades sem fins lucrativos com foco em capacitação ou programas de geração de emprego e renda.

As disparidades de escala e tecnologia entre os produtores dificultam a oferta de garantia de origem por elevar os custos de monitoramento por parte dos processadores, em razão da falta de padronização de processos. Como a garantia de origem implica basicamente em oferecer determinados atributos de qualidade em produtos ou processos, a necessidade de adquirir matérias primas de fornecedores com perfis diferenciados torna esse processo mais complexo e custoso.

As estratégias dos processadores relacionadas à oferta de garantias de origem envolvem a forma de coordenação da transação de suprimento e a escolha de padrões tecnológicos específicos. No caso do suprimento, os modelos básicos encontrados são as transações entre empresas de alimentos domésticas ou internacionais e produtores independentes ou associados, transações entre cooperativas com plantas industriais e seus cooperados ou a integração vertical das etapas de produção e processamento.

As empresas de alimentos geralmente possuem uma linha extensa de produtos lácteos e fazem investimentos expressivos em promoção, principalmente as empresas de grande porte. A oferta de garantia de origem geralmente está associada a programas de capacitação de fornecedores e busca da fidelização com base na expectativa de continuidade do relacionamento, apesar de não haver contratos formais. Para o consumidor, a garantia está associada à reputação da marca. Apesar desses esforços, observa-se a ocorrência de comportamentos oportunistas dos produtores no desvio da produção para outros canais. Esse processo de gestão da rede de fornecedores tornou-se extremamente complexo, a ponto de provocar o surgimento de agentes especializados, contratados pelos processadores para realizar a busca de novos fornecedores, elaborar e conduzir a logística de coleta, controlar a qualidade do leite coletado e pagar aos produtores.

No caso das cooperativas com plantas industriais, a oferta de garantia de origem pode ser facilitada pelo relacionamento mais estreito com os fornecedores cooperados. Desde que exista uma relativa homogeneidade entre os perfis produtivos dos cooperados e a cooperativa possua as competências necessárias, a comunicação para a orientação estratégica e a capacitação dos fornecedores pode ocorrer com custos reduzidos. Um exemplo internacional de garantia de origem com base na produção orgânica é a Organic Valley Family of Farms, uma organização que produz produtos lácteos, carnes, ovos, vegetais e sucos por meio de 1624 produtores nos EUA. Em sua página na internet (www.organicvaley.coop), informa-se que a organização apóia os pequenos produtores e a renda de comunidades rurais combinando dois modelos de negócios: agricultura familiar e cooperativa. A missão divulgada da cooperativa é a apoiar as comunidades rurais operando com base na sustentabilidade econômica e ambiental. Desta forma, a garantia de origem oferecida aos consumidores envolve o atributo orgânico dos produtos e os benefícios para a comunidade de pequenos agricultores envolvida.

As estratégias tecnológicas dos processadores também podem ter um papel relevante na oferta da garantia de origem. Uma inovação tecnológica de grande impacto na cadeia produtiva do leite no Brasil foi a embalagem longa vida. Ao aumentar o tempo de prateleira do produto, alterou o padrão de concorrência entre os processadores, visto que expandiu a quantidade de marcas que poderiam estar disponíveis no varejo ao incluir produtos de regiões mais distantes. Recentemente, uma parceria entre a empresa dominante de embalagem longa vida e uma cooperativa processadora de leite resultou no lançamento do primeiro leite UHT com rastreabilidade com base em código na embalagem. O sistema permite que o consumidor obtenha informações detalhadas sobre a origem, com dados da localização, do produtor e do histórico do lote que originou o produto adquirido, com dados disponíveis na internet. 

O mercado consumidor das famílias no Brasil tem passado por profundas transformações nos últimos anos, principalmente em razão do aumento da renda. A combinação de políticas públicas de transferência de renda, elevação consistente do salário mínimo e aumento da oferta de empregos formais pelo crescimento da economia promoveram efeitos significativos na distribuição de renda da população.

O relatório A nova classe média: o lado brilhante dos pobres, resultante de pesquisa coordenada por Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), revela este processo. O levantamento indica que quase 30 milhões de brasileiros passaram a ingressar a classe C, com renda familiar per capita entre R$ 1.126 a R$ 4.854 (definida como nova classe média pela FGV) em 2009. A pesquisa mostra que esta parcela foi a que mais cresceu entre 2003 e 2009, chegando a abranger 94,9 milhões de pessoas (50,5% do total da população). No mesmo período, mais de 20 milhões de brasileiros subiram para as classes A e B, de renda maior. Os brasileiros que se enquadravam nas classes D (R$ 706 a R$ 1.125) e E (até R$ 705) passaram de pouco mais de 96 milhões para 73 milhões de pessoas.

O nível de renda adquirido pelos novos integrantes da classe C pode favorecer o aumento no consumo de proteína animal e produtos industrializados, entre os quais os laticínios, como queijos, iogurtes e bebidas lácteas. Esta situação revela-se uma oportunidade potencial para o investimento na expansão da oferta de garantias de origem por parte dos processadores de leite. À medida que o consumidor médio se torna mais esclarecido e mais rico no Brasil, espera-se que ele acompanhe o aumento da exigência de informações sobre a origem dos produtos, como se observa em consumidores de países desenvolvidos.

A oferta de garantia de origem representa um campo com enorme potencial de expansão no mercado de produtos lácteos no Brasil. Aos empreendedores interessados, sejam investidores ou agentes que já atuam na cadeia produtiva, cabe o estudo aprofundado dos temas apresentadas neste artigo, avaliando as condições da produção agropecuária, das estratégias de suprimento e do mercado consumidor.

Antonio Carlos Lima Nogueira - Mestre em administração pela FEA-USP. E-mail: aclimano@gmail.com

Fonte: Antonio Carlos Lima Nogueira

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